Nuno Camarneiro: Debaixo de Algum Céu


Que viste em mim? Que me achaste? Se eu tão desviada e tão perdida. Aqui já nada, meu querido padre, aqui só ontem e noite e dores. Ouviste-me e falei-te, falha do resto, vi em ti o que me faltava, o que me podia consolar e consolou. Demo-nos mais de corpo do que devíamos, tontos nós, abrigados em abismos maravilhosos, mas isso que é? Loucura é perdermo-nos, Daniel, queda certa e má e nada. Não me perdoaste nem ninguém nos perdoou, se ainda doemos, se trazemos ainda o mal colado à pele.
Aguentaste um pouco mais a minha morte certa, agradeço-te, beijo-te as mãos porque foste bom e franco. Agora é tempo de outra sorte, de nos entregarmos ao que vem, que é uma coisa para mim e outra para ti.
Foste um bem, Daniel, e assim te guardo. Deixa-me neste momento porque mesmo anjo me serias peso. Até a luz me faz sombra, querido Daniel, o ar sufoca-me e tudo, tudo me cansa.
Talvez não saibas e, se o bom Deus te perdoar, nunca chegarás a saber o que é doerem as paredes e o chão que se pisa, doer o ar e o tempo todo, doer o passado e a memória.
Amei o meu marido mais do que devia. Fiz por ele o que nenhuma mulher deve fazer, que foi matá-lo para que morresse homem ainda. Também ele sentia dores que em muito excediam o corpo frágil, agora herdei-as e devo seguir o seu caminho.
Não te peço que faças o que me arrependo de ter feito, apenas que me deixes ir, que não impeças o que não podes impedir. Eu já estou com ele por muitas partes, vou à procura de encontros, Daniel, de mim comigo, de mim com ele.
Se há algum lugar é para lá que vou, e se não há consolo-me com nada, que é mais do que agora tenho.

Lembra-te de mim, Daniel, mas não te lembres muito de mim.

Adeus,
Beatriz

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