Rui Nunes: Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz


alguém me procurava
o que lembro : manchas de luz, só manchas, na infância, amarelo
de areia e azul transparente, água através da qual outra luz surgia,
nos meus olhos abertos uma pedra coberta de limo,
o verde ondulava num movimento que fazia crescer cada fio e o
tornava vagaroso,
via-se a luz, a sua vida perceptível nas pequenas bolhas de ar a
desprenderem-se do fundo, campo vertical semeado de luz,
aproximava-me dele e cada palavra crescia no frio dos meus lábios como um desenho, e quase se tornava visível,
a paisagem afastava todas as outras vozes,
o campo picotado de restolho descia até à praia, gafanhotos saltavam arqueados pelo som, lentos na queda, através do calor íntimo de um som a crescer,
a areia chegava-me à boca, em grãos de som,
o mar era o desenho de um barco,
alguém me procurava, alguém procurava o meu nome, de costas
viradas para mim, a afastar-se de mim, num abandono que não
acabará, no entanto, deve ter havido um momento em que essa
voz se debruçou para a minha voz e se confundiu com ela, mas
esqueci-o : o presente é um afastamento que se inicia, uma manhã que não culminará.

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