José Saramago: Deste Mundo e do Outro


(…) É este o defeito das palavras. Assentámos que não há outro meio de entendermos e explicarmos, e acabamos por descobrir que ficamos a meio da explicação, e tão longe do entendimento que bem melhor teria sido deixar os olhos e ao gesto o seu peso de silêncio. Talvez mesmo o gesto seja de mais. No fim de contas, ele não é outra coisa que o desenho de uma palavra, o caminhar de uma frase no espaço. Restam-nos os olhos e o seu acesso privilegiado às aparições.

Coisas destas não acontecem muitas vezes na vida. Dependem de uma conjunção de tempo e de lugar, da viagem terrestre de um ser determinado e dos impulsos obscuros ou conscientes que nessa viagem o tenham guiado. Dependem (quem sabe?) dos astros, da sua posição no céu, da fase da lua, da hora a que ela nasceu ou vai desaparecer. Dependem de uma sombra, de uma vibração da atmosfera. Dependem de chegarmos no momento exacto ao sitio preciso. Temos uma probabilidade em um milhão - e, no entanto, acontece.
(…)
E veio a aparição. De muito longe uma brisa murmurante aproximou-se. Moveu as hastes tenras das ervas, as navalhas verdes dos canaviais, fez ondular um arrepio de luz as águas paradas do charco, ergueu como uma onda os ramos estendidos, envolveu o rapaz num rápido remoinho - e seguiu adiante até a árvore que o esperava. E subiu pelo tronco e pelas ramagens, murmurando sempre. E as folhas voltaram para a lua a sua face escondida, e toda a árvore se cobriu de branco até ao ramo mais alto. E aos olhos deslumbrados do rapaz, agora trémulo de comoção e assombro, a aparição da faia miraculosa mostrou-se num vertiginoso segundo – que vai durar enquanto durar a vida.

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