Al Berto: O Medo


caminhar no deserto, reencontrar a magia das palavras e usá-las com maior ou menor inocência, como se as usássemos pela primeira vez, como se acabássemos de as desenterrar das areias. as palavras, esses oásis envelhecidos que me revestem o corpo como um trapo que sempre me tenha pertencido.
confesso que sou superviciado de palavras, outros são-no de heroína ou de barbitúricos. na verdade passei bastantes anos ingerindo speeds e escrevendo. alinhava palavras, rasgavas-as, voltava a escrevê-las obsessivamente. tudo o que possuía era uma resma de milhares de folhas de papel escritas à queima-roupa noite após noite.
escrevia até romper o dia, até que os dedos me doessem e os tendões do pulso paralisassem. então, relia e rasgava. tinha a certeza de que não eram aquelas as palavras que me reflectiam. sabia que ainda não conseguira chegar às palavras que, mal acabamos de escrever, se iluminam por dentro. ainda não atingira a visão clara das coisas silenciosas, o início, o ouro imperecível.
ingeria cada dia mais drogas, e a dado momento tive a visão do que deve ter sido o primeiro homem a alinhavar, pela primeira vez, o seu nome. parei aterrorizado. ali estava, enfim, a morte da inocência, e a revelação do destino que me propunha cumprir: escrever, escrever sempre.
a partir desse momento acumulei infindáveis cadernos escritos, era esta a única maneira de remediar o medo e não possuir nada, e de ter possuído tudo.

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