Rui Nunes: Rostos


São poucas as palavras onde a história se concentra. De vez em quando, sentimos o peso de uma delas e repetimo-la durante uns dias: é uma palavra que parte as nossas frases, que interrompe os nossos silêncios com a sua violência, às vezes ergue-nos a mão para um gesto, para um rosto, e subtrai-nos o gesto que vemos realizar-se à nossa frente, há palavras por onde toda a memória passa como por uma porta que abra para o terraço: o gafanhoto esmagado, seco e cheio de pontas aceradas de quitina, rodeado de formigas que o devoram. Quando dizemos uma dessas palavras, todo o tempo se torna simultâneo, elas são o lugar onde se realiza a promessa. Há palavras que se abrem para um olho cego e obrigam o corpo a virar-se para si, a comer as suas fezes e a beber as suas lágrimas, há palavras que brilham como o frio percutido pelo ódio, uma lâmina come a sua fulguração. Há a palavra enorme, de uma mudez terrível, que virou o vazio para si e construiu com júbilo tudo o que morre,
toda a palavra morre,
falamos e vemos a morte: a palavra que queremos prolongar, essa morte que nasce da nossa boca: povoamos então o mundo do que vai morrer, se nos calamos é porque não suportamos o holocausto,
a morte pode vir para um tempo que já não lhe pertence.

Comentários

Mensagens populares