José Eduardo Agualusa: Sebastião Eusébio



vivo no terror de um dia acordar e não saber quem sou. imaginem um gajo, um gajo qualquer, imaginem que lhe arrancam os olhos. vamos dar-lhe um nome e uma ocupação, para ser mais fácil. por exemplo, sebastião eusébio, camponês. a gente lhe arranca os olhos e o gajo continua a ser o sebastião eusébio, camponês, embora cego. vamos-lhe cortar uma mão, depois um braço, uma orelha, a seguir o nariz, enfim, vamos desbastando o sebastião, golpe a golpe, como se fosse a ramada de uma árvore. mesmo mutilado ele continuará a ser o sebastião eusébio. agora experimentemos arrancar-lhe não pedaços do corpo, o que é bastante fácil, exige apenas mão firme, alguma prática e um certo alheamento do espírito. vamos arrancar-lhe recordações. primeiro lhe arrancamos a imagem da mãe pilando milho com as outras mulheres, enquanto cantavam; depois a lembrança boa das brincadeiras com os irmãos e os primos entre o canavial, junto ao rio; a seguir, o frescor da água tirada do moringue. tiramos também de dentro da cabeça do sebastião as histórias que a avó lhe contava, o cheiro do cachimbo e as pequenas gargalhadas dela. então me respondam: aquele homem que nunca foi menino, aquele homem ainda é o sebastião?

José Eduardo Agualusa, A Sociedade dos Sonhadores Involuntários

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