António Franco Alexandre: Poemas com Cinema


Ir ao cinema, na caverna escura,
sentar-me na poltrona do teu ombro
numa t-shirt antiga de bom pêlo,
é o prazer mais certo que me resta.

Que bom deixar-me estar na oscilação discreta
que nasce do teu corpo e me transporta
a essa embriaguez chamada rima;
sentir o cheiro limpo do cabelo,
adivinhar-te o gosto da saliva.

Pois, embora eu veja a multidão compacta
(que a imagem tornou inofensiva)
estremecer e rir e comover-se
à imprecisa luz da narrativa,
eu sei que é tudo só um mero acto
de magia vulgar vinda do tecto
onde o olhar obsceno do arquitecto
ao longo da sessão vigia e julga;
e mesmo a clara forma da paisagem
é tosco véu de uma ilusão sensível,
metáfora ou reflexo de outro mundo
perfeito e puro, onde não entra gente
(mas entra, vê tu bem, a miserável pulga).

Tu porém és real, sentes lá dentro
um coração pulsar, e até parece
que tens em ti a inclinação secreta
a seres dono de ti, e partilhar
a vida verdadeira de um insecto.

Assim eu sonho e penso, já suspenso
por fino fio, à altura do teu peito;
mas já, impaciente, tu murmuras
que perdes o réu tempo em desgraçada fita;
melhor seria, em quente discoteca,
toda a noite dançar (uma invenção maldita,
alheia à condição de quem medita),
ou regressar a casa, onde de graça
te aguarda mais concreta companhia.

Ficar por aqui só, sem o mistério
da tua carne branca bem cheirosa,
é uma perspectiva que me assusta;
como dizer-te que também eu quero
afinal conhecer o nó do enredo?

De poucas horas feita a longa vida,
são estas as melhores e as mais justas;
está o filme a acabar, fica comigo até ao fim;
não sabes que te perdes, quando te perdes de mim?

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